Este artigo tem como objetivo analisar, sob uma perspectiva teórica e empírica, a Demonstração do Valor Adicionado (DVA) como instrumento de mensuração da riqueza gerada pelas empresas e sua respectiva distribuição entre os diversos agentes econômicos que contribuem para a atividade empresarial. Ao resgatar os fundamentos econômicos do conceito de valor adicionado, o estudo também busca avaliar a utilidade da DVA na formulação de políticas públicas, na análise setorial e regional do PIB, e no aprimoramento da transparência corporativa perante os stakeholders.
Embora a DVA tenha se tornado obrigatória no Brasil apenas a
partir da Lei 11.638/2007 — aplicável às companhias abertas, conforme o artigo
176 da Lei das Sociedades por Ações (Lei 6.404/76) — seu conteúdo extrapola a
lógica tradicional da Demonstração do Resultado do Exercício (DRE), ao
incorporar uma visão mais abrangente e social da atividade empresarial. Em vez
de limitar-se à apuração do lucro líquido destinado aos acionistas, a DVA
evidencia a riqueza econômica total criada pela entidade, apresentando sua
alocação entre empregados, governo, financiadores e acionistas. Com isso, a DVA
torna-se um instrumento potencialmente mais alinhado à ideia de accountability
diante de uma multiplicidade de partes interessadas.
O dilema prático que motivará a análise ao longo deste
trabalho pode ser sintetizado da seguinte forma: seria a DVA um instrumento
meramente informativo, com baixa utilidade prática, ou ela de fato contribui
para ampliar a transparência, a análise da geração de valor pelas empresas e a
mensuração da sua contribuição socioeconômica? Essa pergunta se impõe não
apenas para pesquisadores e professores de contabilidade, mas também para
reguladores, analistas e gestores, especialmente em um contexto em que se intensificam
os debates sobre responsabilidade social corporativa, sustentabilidade e
governança pública da informação contábil.
Nas seções seguintes, serão desenvolvidos os aspectos
conceituais, normativos e técnicos da DVA, com apoio em evidências empíricas
obtidas a partir de demonstrações publicadas por grandes empresas brasileiras.
Essa abordagem permitirá, ao final, apresentar uma resposta ao dilema proposto,
indicando se a DVA deve ser promovida como ferramenta relevante de análise
econômico-contábil ou se permanece restrita a um papel marginal, de exigência
formal pouco explorada.
2. Desenvolvimento
2.1 Origem e Fundamentos Econômicos do Valor Adicionado
O conceito de valor adicionado tem raízes na teoria
econômica clássica, especialmente na contabilidade nacional, onde é utilizado
como base para o cálculo do Produto Interno Bruto (PIB). De acordo com Simonsen
(1975), “valor adicionado em determinada etapa de produção é a diferença entre
o valor bruto da produção e os consumos intermediários nessa etapa”. Assim, o
PIB pode ser compreendido como a soma dos valores adicionados em todas as
etapas dos processos produtivos de um país, em um determinado período de tempo.
Transposto para o contexto empresarial, o valor adicionado
representa a riqueza gerada por uma entidade a partir da combinação de fatores
de produção sob seu controle. Tal conceito passou a ganhar relevância nas
discussões contábeis a partir dos anos 1960, em meio à ascensão da agenda de
responsabilidade social corporativa e à crítica ao modelo de reporte financeiro
centrado exclusivamente nos acionistas. Países como França, Inglaterra e África
do Sul adotaram modelos de demonstrações complementares à Demonstração do
Resultado, com vistas a evidenciar a geração e distribuição da riqueza
produzida pela empresa.
No Brasil, embora a DVA tenha se tornado obrigatória apenas
em 2007, sua discussão acadêmica remonta a estudos como os de De Luca (1998) e
Morley (1979), os quais buscavam integrar o conceito de valor adicionado ao
instrumental contábil, para proporcionar uma visão mais completa e socialmente
engajada da atividade empresarial.
2.2 A Evolução Normativa e Institucional da DVA no Brasil
A institucionalização da DVA no Brasil foi consolidada pela
Lei 11.638/2007, que alterou a Lei das Sociedades por Ações (Lei 6.404/76) e
passou a exigir sua apresentação obrigatória pelas companhias abertas. A
normatização técnica foi estabelecida pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis
(CPC), por meio do Pronunciamento Técnico CPC 09 – Demonstração do Valor
Adicionado.
O CPC 09 estabelece a DVA como parte integrante das
demonstrações contábeis e padroniza a sua estrutura com o objetivo de
evidenciar, de forma clara, a riqueza gerada por uma entidade e sua
distribuição entre os fatores de produção e o Estado. O Conselho Federal de
Contabilidade também incorporou o conteúdo do CPC 09 às Normas Brasileiras de
Contabilidade, por meio da NBC T 3.7.
Vale destacar que a DVA não é exigida pelo International
Accounting Standards Board (IASB), não compondo o conjunto mínimo de
demonstrações obrigatórias segundo o IAS 1 – Presentation of Financial
Statements. Apesar disso, diversas experiências internacionais —
notadamente na França e na África do Sul — incluem demonstrações similares em
seus relatórios de sustentabilidade e responsabilidade corporativa.
2.3 Estrutura Técnica da DVA segundo o CPC 09
A estrutura técnica da Demonstração do Valor Adicionado é
definida pelo Pronunciamento Técnico CPC 09, que a organiza em blocos que
evidenciam tanto a origem quanto a destinação da riqueza gerada pela empresa.
Conforme mencionado, esses blocos incluem: (1) Receitas, (2) Insumos adquiridos
de terceiros, (3) Depreciação, amortização e exaustão, (4) Valor adicionado
recebido em transferência e (5) Distribuição do valor adicionado entre os
agentes econômicos.
Para facilitar a compreensão, vejamos a seguir um exemplo
didático simplificado, adaptado de situações práticas comuns:
Exemplo de DVA Simplificada – Empresa Fictícia Zeta S.A.
Item |
Valor (R$) |
Descrição |
1. Receita Bruta de Vendas |
1.000.000 |
Inclui tributos incidentes |
2. (-) Insumos adquiridos de terceiros |
(400.000) |
Matéria-prima, energia, serviços |
= Valor adicionado bruto |
600.000 |
Riqueza antes de depreciação |
3. (-) Depreciação, amortização e exaustão |
(50.000) |
Imobilizado e intangível |
= Valor adicionado líquido |
550.000 |
Valor gerado pela empresa |
4. (+) Valor adicionado recebido em transferência |
30.000 |
Juros ativos, dividendos, equivalência patrimonial |
= Valor adicionado total a distribuir |
580.000 |
Base da distribuição |
Distribuição do Valor Adicionado: |
||
- Pessoal |
220.000 |
Salários, benefícios e encargos |
- Governo |
140.000 |
Tributos diretos (IR, CSSL, INSS) |
- Capitais de terceiros |
90.000 |
Juros, aluguéis, royalties |
- Capitais próprios |
130.000 |
Dividendos + lucros retidos |
Esse exemplo destaca como a empresa Zeta S.A. gerou um valor
adicionado total de R$ 580.000, distribuído entre diversos stakeholders. A DVA
evidencia que menos de 25% desse valor foi apropriado por seus acionistas, o
que contrasta fortemente com a lógica da DRE, como veremos na próxima seção.
2.4 Comparação entre DVA e DRE: Continuação do Exemplo
Zeta S.A.
Abaixo, apresentamos uma Demonstração do Resultado do
Exercício (DRE) correspondente à empresa Zeta S.A., utilizando os mesmos
dados-base:
DRE Simplificada – Zeta S.A.
Item |
Valor (R$) |
Receita líquida de vendas (ex-tributos) |
850.000 |
(-) Custo dos produtos vendidos (CPV) |
(320.000) |
= Lucro bruto |
530.000 |
(-) Despesas operacionais (inclui pessoal) |
(170.000) |
(-) Depreciação e amortização |
(50.000) |
(-) Despesas financeiras |
(90.000) |
(+) Receitas financeiras e equivalência |
30.000 |
(-) Tributos sobre o lucro |
(120.000) |
= Lucro líquido do exercício |
130.000 |
Note-se que, embora o lucro líquido (R$ 130.000) seja
coincidente com o valor distribuído aos capitais próprios na DVA, a
estrutura de ambas as demonstrações é profundamente diferente:
- A DRE
foca no resultado residual para o acionista;
- A DVA
expõe como a empresa gerou e alocou os R$ 580.000 de riqueza, antes da
apuração do lucro.
Essa distinção evidencia que a DVA oferece uma visão mais
ampla da performance econômica e da função distributiva da empresa, servindo a
múltiplos interesses sociais e regulatórios.
2.5 Evidências Empíricas sobre a Distribuição do Valor
Adicionado no Brasil
Pesquisas recentes confirmam a relevância da DVA como
instrumento de transparência e accountability. Um levantamento realizado pela
Fipecafi com base nos dados das 500 maiores empresas do país (Exame Melhores e
Maiores, 2019) indica as seguintes médias de distribuição do valor adicionado:
Destinação |
Participação Média (2019) |
Pessoal |
25% |
Governo |
35% |
Capitais de terceiros |
20% |
Capitais próprios |
20% |
No mesmo estudo, observou-se que setores regulados — como
energia, petróleo e tabaco — apresentaram maior proporção de tributos (ex.:
Petrobras e Souza Cruz), enquanto empresas de capital intensivo (como
siderurgia e aviação) mostraram maior destinação a capitais de terceiros.
Além disso, em estudo publicado no Revista Contabilidade
& Finanças (Araújo et al., 2021), os autores demonstram que a DVA
apresenta alto poder explicativo para indicadores de performance social, sendo
positivamente correlacionada com disclosure ESG e com práticas de
sustentabilidade.
Essas evidências reforçam que, ao contrário de ser um
artefato contábil periférico, a DVA está cada vez mais integrada ao discurso
corporativo e às métricas de análise social e estratégica das empresas.
2.6 Exemplos Práticos de Empresas Brasileiras
Vamos agora detalhar melhor os dados extraídos das DVA’s de
grandes companhias, com interpretações qualitativas:
- Petrobras
(2009): gerou R$ 138 bilhões em valor adicionado, dos quais 57% foram
direcionados ao governo. Isso evidencia seu papel arrecadatório no Estado
brasileiro, sendo uma empresa estratégica em termos fiscais. Apenas 11% do
valor foi para os empregados — mostrando baixo índice de internalização da
riqueza via trabalho.
- CSN
(2009): distribuiu 41% ao capital próprio, refletindo uma política de
dividendos agressiva e forte lucratividade. Os tributos representaram 37%
e os juros apenas 6%, revelando uma estrutura de capital majoritariamente
própria.
- Lojas
Americanas (2009): alocou 43% aos capitais de terceiros, evidenciando
dependência financeira significativa. O capital próprio recebeu somente
7%, o que pode indicar baixa lucratividade ou estratégia de reinvestimento
limitado.
- Souza
Cruz (2009): tributos representaram impressionantes 77% do valor
adicionado, o que reflete o caráter extrafiscal da tributação do setor de
fumo no Brasil.
- Embraer
(2009): com 51,6% alocados a pessoal, destaca-se como empresa
intensiva em mão de obra qualificada, coerente com sua atuação tecnológica
e foco em engenharia de ponta.
Essas distribuições revelam que a DVA é um espelho das
escolhas estratégicas e posicionamentos institucionais das empresas, oferecendo
insumos valiosos para a análise crítica e comparativa.
2.7 Utilidade da DVA para Análise da Empresa e Valuation
Retomando o exemplo da Zeta S.A., podemos aplicar sua
DVA a diferentes dimensões da análise empresarial:
- Capacidade
de geração de valor: o valor adicionado líquido (R$ 550.000)
representa 64,7% da receita líquida. Esse indicador mostra elevada
eficiência na conversão de receita em valor econômico.
- Risco
financeiro: a parcela de 15,5% (R$ 90.000) destinada a capitais de
terceiros indica uma dependência moderada de financiamento externo — útil
para analistas de crédito.
- Responsabilidade
social: 38% do valor adicionado (R$ 220.000) foi destinado a
trabalhadores, sinalizando políticas de valorização da força de trabalho.
- Contribuição
fiscal: os tributos pagos (R$ 140.000) equivalem a 24% do total,
indicando significativa carga tributária e possível relevância para o
desenvolvimento regional ou nacional.
- Valuation
estratégico: embora a DVA não entre diretamente nos fluxos de caixa
descontados, ela pode alimentar métricas de sustentabilidade, risco
regulatório e potencial de geração de valor socioeconômico. O valor
adicionado por empregado, por exemplo, é uma métrica que complementa
indicadores de produtividade e margem EBITDA.
Em contextos de análise de risco ESG ou avaliação de impacto
social, a DVA se torna ainda mais valiosa, pois fornece dados que a DRE e o
Balanço Patrimonial não evidenciam de forma transparente.
3. Considerações Finais
Este artigo teve por objetivo analisar a Demonstração do
Valor Adicionado (DVA) como instrumento contábil de mensuração da riqueza
econômica gerada pelas empresas e sua distribuição entre os diversos
stakeholders. Com base nos fundamentos econômicos do valor adicionado, nas
normas contábeis brasileiras (CPC 09) e em evidências empíricas de grandes
empresas brasileiras, foi possível avaliar a DVA sob múltiplas dimensões:
informacional, analítica, social e estratégica.
O dilema prático apresentado na introdução — sobre se a DVA
é meramente um artefato formal ou se tem valor substantivo para análise — foi
respondido de forma positiva. A DVA apresenta utilidade concreta para diversos
públicos: reguladores, analistas financeiros, investidores institucionais e
gestores. Sua capacidade de revelar a distribuição da riqueza entre trabalho,
capital, Estado e credores a torna um instrumento singular para estudos de
impacto, responsabilidade social corporativa, eficiência fiscal e, até mesmo,
aspectos do valuation de empresas.
A comparação com a DRE mostrou que as duas demonstrações são
complementares: enquanto a DRE é orientada ao lucro residual, a DVA permite
avaliar a empresa como organização produtiva e social. O exemplo prático da
empresa fictícia Zeta S.A. demonstrou como a DVA pode revelar aspectos que
permanecem ocultos na DRE, especialmente em relação à distribuição do valor e à
estrutura de financiamento.
Evidências empíricas mais recentes indicam que a DVA tem
ganhado espaço no discurso de sustentabilidade e nas métricas de ESG,
contribuindo para uma visão mais ampla da performance corporativa. Empresas
como Petrobras, CSN e Embraer ilustram, com dados concretos, como a DVA espelha
modelos de negócios, escolhas políticas e características setoriais.
Em termos de ensino, a DVA proporciona um excelente recurso
didático para introduzir conceitos de contabilidade social, análise de
stakeholders e integração entre contabilidade financeira e economia pública. Em
termos de políticas públicas, a informação oriunda da DVA pode servir de base
para decisões sobre incentivos fiscais, planejamento regional e avaliação de
impacto econômico.
Por fim, a utilidade da DVA transcende sua função formal de
disclosure: ela é um instrumento que conecta contabilidade, economia e
responsabilidade social. Sua integração efetiva na análise financeira e na
regulação pode ampliar a accountability das empresas diante da sociedade e do
Estado.
Referências
Araújo, A. M. P., Santos, J. E. A., & Costa, M. F. S.
(2021). Demonstração do Valor Adicionado e práticas ESG: evidências no mercado
brasileiro. Revista Contabilidade & Finanças, 32(85), 234–251.
CPC 09 – Comitê de Pronunciamentos Contábeis. (2008). Demonstração
do Valor Adicionado. Recuperado de https://www.cpc.org.br
De Luca, M. M. M. (1998). Contabilidade como instrumento
de responsabilidade social: uma análise crítica da Demonstração do Valor
Adicionado. Tese de Doutorado, FEA-USP.
Fipecafi. (2019). Estudo sobre as maiores empresas
brasileiras. São Paulo: Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis,
Atuariais e Financeiras.
Gray, R.
& Maunders, K. (1975). Corporate Social Reporting: Accounting and
Accountability. London: Prentice Hall.
Morley, M.
(1979). Value Added Reporting: A study of value added as a measure of
corporate performance. London: Gower Press.
Simonsen, M. H. (1975). Curso de Economia Monetária.
2ª ed. Rio de Janeiro: APEC.
Santos, J. E. A. (2003). A carga tributária nas
demonstrações de valor adicionado das empresas brasileiras. Revista do BNDES,
10(20), 47–82.
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