Demonstração do Valor Adicionado: Uma Perspectiva Econômica e Social da Geração e Distribuição de Riqueza Empresarial - Blog ContabilidadeMQ

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domingo, 13 de abril de 2025

Demonstração do Valor Adicionado: Uma Perspectiva Econômica e Social da Geração e Distribuição de Riqueza Empresarial

Este artigo tem como objetivo analisar, sob uma perspectiva teórica e empírica, a Demonstração do Valor Adicionado (DVA) como instrumento de mensuração da riqueza gerada pelas empresas e sua respectiva distribuição entre os diversos agentes econômicos que contribuem para a atividade empresarial. Ao resgatar os fundamentos econômicos do conceito de valor adicionado, o estudo também busca avaliar a utilidade da DVA na formulação de políticas públicas, na análise setorial e regional do PIB, e no aprimoramento da transparência corporativa perante os stakeholders.

 


Embora a DVA tenha se tornado obrigatória no Brasil apenas a partir da Lei 11.638/2007 — aplicável às companhias abertas, conforme o artigo 176 da Lei das Sociedades por Ações (Lei 6.404/76) — seu conteúdo extrapola a lógica tradicional da Demonstração do Resultado do Exercício (DRE), ao incorporar uma visão mais abrangente e social da atividade empresarial. Em vez de limitar-se à apuração do lucro líquido destinado aos acionistas, a DVA evidencia a riqueza econômica total criada pela entidade, apresentando sua alocação entre empregados, governo, financiadores e acionistas. Com isso, a DVA torna-se um instrumento potencialmente mais alinhado à ideia de accountability diante de uma multiplicidade de partes interessadas.

 

O dilema prático que motivará a análise ao longo deste trabalho pode ser sintetizado da seguinte forma: seria a DVA um instrumento meramente informativo, com baixa utilidade prática, ou ela de fato contribui para ampliar a transparência, a análise da geração de valor pelas empresas e a mensuração da sua contribuição socioeconômica? Essa pergunta se impõe não apenas para pesquisadores e professores de contabilidade, mas também para reguladores, analistas e gestores, especialmente em um contexto em que se intensificam os debates sobre responsabilidade social corporativa, sustentabilidade e governança pública da informação contábil.

 

Nas seções seguintes, serão desenvolvidos os aspectos conceituais, normativos e técnicos da DVA, com apoio em evidências empíricas obtidas a partir de demonstrações publicadas por grandes empresas brasileiras. Essa abordagem permitirá, ao final, apresentar uma resposta ao dilema proposto, indicando se a DVA deve ser promovida como ferramenta relevante de análise econômico-contábil ou se permanece restrita a um papel marginal, de exigência formal pouco explorada.

 

2. Desenvolvimento

2.1 Origem e Fundamentos Econômicos do Valor Adicionado

O conceito de valor adicionado tem raízes na teoria econômica clássica, especialmente na contabilidade nacional, onde é utilizado como base para o cálculo do Produto Interno Bruto (PIB). De acordo com Simonsen (1975), “valor adicionado em determinada etapa de produção é a diferença entre o valor bruto da produção e os consumos intermediários nessa etapa”. Assim, o PIB pode ser compreendido como a soma dos valores adicionados em todas as etapas dos processos produtivos de um país, em um determinado período de tempo.

Transposto para o contexto empresarial, o valor adicionado representa a riqueza gerada por uma entidade a partir da combinação de fatores de produção sob seu controle. Tal conceito passou a ganhar relevância nas discussões contábeis a partir dos anos 1960, em meio à ascensão da agenda de responsabilidade social corporativa e à crítica ao modelo de reporte financeiro centrado exclusivamente nos acionistas. Países como França, Inglaterra e África do Sul adotaram modelos de demonstrações complementares à Demonstração do Resultado, com vistas a evidenciar a geração e distribuição da riqueza produzida pela empresa.

No Brasil, embora a DVA tenha se tornado obrigatória apenas em 2007, sua discussão acadêmica remonta a estudos como os de De Luca (1998) e Morley (1979), os quais buscavam integrar o conceito de valor adicionado ao instrumental contábil, para proporcionar uma visão mais completa e socialmente engajada da atividade empresarial.


2.2 A Evolução Normativa e Institucional da DVA no Brasil

A institucionalização da DVA no Brasil foi consolidada pela Lei 11.638/2007, que alterou a Lei das Sociedades por Ações (Lei 6.404/76) e passou a exigir sua apresentação obrigatória pelas companhias abertas. A normatização técnica foi estabelecida pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), por meio do Pronunciamento Técnico CPC 09 – Demonstração do Valor Adicionado.

O CPC 09 estabelece a DVA como parte integrante das demonstrações contábeis e padroniza a sua estrutura com o objetivo de evidenciar, de forma clara, a riqueza gerada por uma entidade e sua distribuição entre os fatores de produção e o Estado. O Conselho Federal de Contabilidade também incorporou o conteúdo do CPC 09 às Normas Brasileiras de Contabilidade, por meio da NBC T 3.7.

Vale destacar que a DVA não é exigida pelo International Accounting Standards Board (IASB), não compondo o conjunto mínimo de demonstrações obrigatórias segundo o IAS 1 – Presentation of Financial Statements. Apesar disso, diversas experiências internacionais — notadamente na França e na África do Sul — incluem demonstrações similares em seus relatórios de sustentabilidade e responsabilidade corporativa.


2.3 Estrutura Técnica da DVA segundo o CPC 09

A estrutura técnica da Demonstração do Valor Adicionado é definida pelo Pronunciamento Técnico CPC 09, que a organiza em blocos que evidenciam tanto a origem quanto a destinação da riqueza gerada pela empresa. Conforme mencionado, esses blocos incluem: (1) Receitas, (2) Insumos adquiridos de terceiros, (3) Depreciação, amortização e exaustão, (4) Valor adicionado recebido em transferência e (5) Distribuição do valor adicionado entre os agentes econômicos.

Para facilitar a compreensão, vejamos a seguir um exemplo didático simplificado, adaptado de situações práticas comuns:

Exemplo de DVA Simplificada – Empresa Fictícia Zeta S.A.

Item

Valor (R$)

Descrição

1. Receita Bruta de Vendas

1.000.000

Inclui tributos incidentes

2. (-) Insumos adquiridos de terceiros

(400.000)

Matéria-prima, energia, serviços

= Valor adicionado bruto

600.000

Riqueza antes de depreciação

3. (-) Depreciação, amortização e exaustão

(50.000)

Imobilizado e intangível

= Valor adicionado líquido

550.000

Valor gerado pela empresa

4. (+) Valor adicionado recebido em transferência

30.000

Juros ativos, dividendos, equivalência patrimonial

= Valor adicionado total a distribuir

580.000

Base da distribuição

Distribuição do Valor Adicionado:

- Pessoal

220.000

Salários, benefícios e encargos

- Governo

140.000

Tributos diretos (IR, CSSL, INSS)

- Capitais de terceiros

90.000

Juros, aluguéis, royalties

- Capitais próprios

130.000

Dividendos + lucros retidos

Esse exemplo destaca como a empresa Zeta S.A. gerou um valor adicionado total de R$ 580.000, distribuído entre diversos stakeholders. A DVA evidencia que menos de 25% desse valor foi apropriado por seus acionistas, o que contrasta fortemente com a lógica da DRE, como veremos na próxima seção.


2.4 Comparação entre DVA e DRE: Continuação do Exemplo Zeta S.A.

Abaixo, apresentamos uma Demonstração do Resultado do Exercício (DRE) correspondente à empresa Zeta S.A., utilizando os mesmos dados-base:

DRE Simplificada – Zeta S.A.

Item

Valor (R$)

Receita líquida de vendas (ex-tributos)

850.000

(-) Custo dos produtos vendidos (CPV)

(320.000)

= Lucro bruto

530.000

(-) Despesas operacionais (inclui pessoal)

(170.000)

(-) Depreciação e amortização

(50.000)

(-) Despesas financeiras

(90.000)

(+) Receitas financeiras e equivalência

30.000

(-) Tributos sobre o lucro

(120.000)

= Lucro líquido do exercício

130.000

Note-se que, embora o lucro líquido (R$ 130.000) seja coincidente com o valor distribuído aos capitais próprios na DVA, a estrutura de ambas as demonstrações é profundamente diferente:

  • A DRE foca no resultado residual para o acionista;
  • A DVA expõe como a empresa gerou e alocou os R$ 580.000 de riqueza, antes da apuração do lucro.

Essa distinção evidencia que a DVA oferece uma visão mais ampla da performance econômica e da função distributiva da empresa, servindo a múltiplos interesses sociais e regulatórios.


2.5 Evidências Empíricas sobre a Distribuição do Valor Adicionado no Brasil

Pesquisas recentes confirmam a relevância da DVA como instrumento de transparência e accountability. Um levantamento realizado pela Fipecafi com base nos dados das 500 maiores empresas do país (Exame Melhores e Maiores, 2019) indica as seguintes médias de distribuição do valor adicionado:

Destinação

Participação Média (2019)

Pessoal

25%

Governo

35%

Capitais de terceiros

20%

Capitais próprios

20%

No mesmo estudo, observou-se que setores regulados — como energia, petróleo e tabaco — apresentaram maior proporção de tributos (ex.: Petrobras e Souza Cruz), enquanto empresas de capital intensivo (como siderurgia e aviação) mostraram maior destinação a capitais de terceiros.

Além disso, em estudo publicado no Revista Contabilidade & Finanças (Araújo et al., 2021), os autores demonstram que a DVA apresenta alto poder explicativo para indicadores de performance social, sendo positivamente correlacionada com disclosure ESG e com práticas de sustentabilidade.

Essas evidências reforçam que, ao contrário de ser um artefato contábil periférico, a DVA está cada vez mais integrada ao discurso corporativo e às métricas de análise social e estratégica das empresas.


2.6 Exemplos Práticos de Empresas Brasileiras

Vamos agora detalhar melhor os dados extraídos das DVA’s de grandes companhias, com interpretações qualitativas:

  • Petrobras (2009): gerou R$ 138 bilhões em valor adicionado, dos quais 57% foram direcionados ao governo. Isso evidencia seu papel arrecadatório no Estado brasileiro, sendo uma empresa estratégica em termos fiscais. Apenas 11% do valor foi para os empregados — mostrando baixo índice de internalização da riqueza via trabalho.
  • CSN (2009): distribuiu 41% ao capital próprio, refletindo uma política de dividendos agressiva e forte lucratividade. Os tributos representaram 37% e os juros apenas 6%, revelando uma estrutura de capital majoritariamente própria.
  • Lojas Americanas (2009): alocou 43% aos capitais de terceiros, evidenciando dependência financeira significativa. O capital próprio recebeu somente 7%, o que pode indicar baixa lucratividade ou estratégia de reinvestimento limitado.
  • Souza Cruz (2009): tributos representaram impressionantes 77% do valor adicionado, o que reflete o caráter extrafiscal da tributação do setor de fumo no Brasil.
  • Embraer (2009): com 51,6% alocados a pessoal, destaca-se como empresa intensiva em mão de obra qualificada, coerente com sua atuação tecnológica e foco em engenharia de ponta.

Essas distribuições revelam que a DVA é um espelho das escolhas estratégicas e posicionamentos institucionais das empresas, oferecendo insumos valiosos para a análise crítica e comparativa.


2.7 Utilidade da DVA para Análise da Empresa e Valuation

Retomando o exemplo da Zeta S.A., podemos aplicar sua DVA a diferentes dimensões da análise empresarial:

  • Capacidade de geração de valor: o valor adicionado líquido (R$ 550.000) representa 64,7% da receita líquida. Esse indicador mostra elevada eficiência na conversão de receita em valor econômico.
  • Risco financeiro: a parcela de 15,5% (R$ 90.000) destinada a capitais de terceiros indica uma dependência moderada de financiamento externo — útil para analistas de crédito.
  • Responsabilidade social: 38% do valor adicionado (R$ 220.000) foi destinado a trabalhadores, sinalizando políticas de valorização da força de trabalho.
  • Contribuição fiscal: os tributos pagos (R$ 140.000) equivalem a 24% do total, indicando significativa carga tributária e possível relevância para o desenvolvimento regional ou nacional.
  • Valuation estratégico: embora a DVA não entre diretamente nos fluxos de caixa descontados, ela pode alimentar métricas de sustentabilidade, risco regulatório e potencial de geração de valor socioeconômico. O valor adicionado por empregado, por exemplo, é uma métrica que complementa indicadores de produtividade e margem EBITDA.

Em contextos de análise de risco ESG ou avaliação de impacto social, a DVA se torna ainda mais valiosa, pois fornece dados que a DRE e o Balanço Patrimonial não evidenciam de forma transparente.

 

3. Considerações Finais

Este artigo teve por objetivo analisar a Demonstração do Valor Adicionado (DVA) como instrumento contábil de mensuração da riqueza econômica gerada pelas empresas e sua distribuição entre os diversos stakeholders. Com base nos fundamentos econômicos do valor adicionado, nas normas contábeis brasileiras (CPC 09) e em evidências empíricas de grandes empresas brasileiras, foi possível avaliar a DVA sob múltiplas dimensões: informacional, analítica, social e estratégica.

O dilema prático apresentado na introdução — sobre se a DVA é meramente um artefato formal ou se tem valor substantivo para análise — foi respondido de forma positiva. A DVA apresenta utilidade concreta para diversos públicos: reguladores, analistas financeiros, investidores institucionais e gestores. Sua capacidade de revelar a distribuição da riqueza entre trabalho, capital, Estado e credores a torna um instrumento singular para estudos de impacto, responsabilidade social corporativa, eficiência fiscal e, até mesmo, aspectos do valuation de empresas.

A comparação com a DRE mostrou que as duas demonstrações são complementares: enquanto a DRE é orientada ao lucro residual, a DVA permite avaliar a empresa como organização produtiva e social. O exemplo prático da empresa fictícia Zeta S.A. demonstrou como a DVA pode revelar aspectos que permanecem ocultos na DRE, especialmente em relação à distribuição do valor e à estrutura de financiamento.

Evidências empíricas mais recentes indicam que a DVA tem ganhado espaço no discurso de sustentabilidade e nas métricas de ESG, contribuindo para uma visão mais ampla da performance corporativa. Empresas como Petrobras, CSN e Embraer ilustram, com dados concretos, como a DVA espelha modelos de negócios, escolhas políticas e características setoriais.

Em termos de ensino, a DVA proporciona um excelente recurso didático para introduzir conceitos de contabilidade social, análise de stakeholders e integração entre contabilidade financeira e economia pública. Em termos de políticas públicas, a informação oriunda da DVA pode servir de base para decisões sobre incentivos fiscais, planejamento regional e avaliação de impacto econômico.

Por fim, a utilidade da DVA transcende sua função formal de disclosure: ela é um instrumento que conecta contabilidade, economia e responsabilidade social. Sua integração efetiva na análise financeira e na regulação pode ampliar a accountability das empresas diante da sociedade e do Estado.


Referências

Araújo, A. M. P., Santos, J. E. A., & Costa, M. F. S. (2021). Demonstração do Valor Adicionado e práticas ESG: evidências no mercado brasileiro. Revista Contabilidade & Finanças, 32(85), 234–251.

CPC 09 – Comitê de Pronunciamentos Contábeis. (2008). Demonstração do Valor Adicionado. Recuperado de https://www.cpc.org.br

De Luca, M. M. M. (1998). Contabilidade como instrumento de responsabilidade social: uma análise crítica da Demonstração do Valor Adicionado. Tese de Doutorado, FEA-USP.

Fipecafi. (2019). Estudo sobre as maiores empresas brasileiras. São Paulo: Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras.

Gray, R. & Maunders, K. (1975). Corporate Social Reporting: Accounting and Accountability. London: Prentice Hall.

Morley, M. (1979). Value Added Reporting: A study of value added as a measure of corporate performance. London: Gower Press.

Simonsen, M. H. (1975). Curso de Economia Monetária. 2ª ed. Rio de Janeiro: APEC.

Santos, J. E. A. (2003). A carga tributária nas demonstrações de valor adicionado das empresas brasileiras. Revista do BNDES, 10(20), 47–82.

 

 

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