Este artigo tem como objetivo apresentar uma análise abrangente e aplicada dos instrumentos de renda fixa e renda variável, com ênfase em seus fundamentos financeiros, modelos de valuation e tratamento contábil conforme as normas internacionais de contabilidade. O texto se destina a estudantes, professores e profissionais que atuam na interseção entre finanças e contabilidade, oferecendo uma abordagem integrada que alinha teoria econômica, normas contábeis (CPCs/IFRS) e evidências empíricas.
O problema prático que motiva esta análise reside na complexidade enfrentada por investidores e empresas ao escolher entre diferentes instrumentos de financiamento ou investimento, considerando seu impacto sobre risco, retorno, estrutura de capital e apresentação contábil. Essa decisão é ainda mais crítica em contextos como o financiamento de startups, onde instrumentos híbridos como debêntures conversíveis exercem papel central. Ao longo do artigo, exploraremos como o correto entendimento desses instrumentos pode contribuir para decisões mais informadas e alinhadas com os objetivos de longo prazo.
2. Desenvolvimento
2.1 Instrumentos de Renda Fixa
2.1.1 Natureza, Tipos e Características
Os instrumentos de renda fixa representam títulos de dívida nos quais o emissor se compromete a pagar ao investidor uma remuneração pré-determinada, seja ela prefixada, pós-fixada ou híbrida. Entre os principais estão os títulos públicos (Tesouro Direto), debêntures, CDBs, CRIs, CRAs e letras financeiras. A estrutura contratual desses ativos define valor nominal, taxa de remuneração, periodicidade de pagamento, prazos e eventuais garantias.
2.1.2 Valuation de Títulos de Renda Fixa
O valuation de instrumentos de renda fixa baseia-se na atualização dos fluxos de caixa esperados (cupons e principal) por uma taxa de desconto compatível com o risco do emissor e com a curva de juros vigente. A fórmula geral é:
Onde:
-
: preço do título;
-
: pagamento periódico de juros (cupom);
-
: valor nominal (face value);
-
: taxa de desconto (yield);
-
: número de períodos.
Além do preço, é essencial considerar:
-
Duration: média ponderada dos prazos dos fluxos de caixa, que mede a sensibilidade do título à variação da taxa de juros;
-
Convexidade: refina a estimativa de variação de preço com base em grandes alterações de juros.
Exemplo prático: Uma debênture da Vale paga cupons semestrais de R$ 40, tem valor nominal de R$ 1.000, vencimento em 3 anos e yield de mercado de 8% a.a. O preço do título pode ser obtido pela fórmula acima e ajustado conforme mudanças na curva de juros.
2.1.3 Contabilização: Custo Amortizado, FVPL e FVOCI
Conforme a NBC TG 48 / IFRS 9, a classificação dos ativos financeiros depende do modelo de negócios e do teste SPPI (Solely Payments of Principal and Interest):
-
Custo amortizado: ativos mantidos para recebimento de fluxos contratuais.
-
Valor justo por meio do resultado (FVPL): ativos mantidos para negociação.
-
Valor justo por meio de outros resultados abrangentes (FVOCI): ativos geridos com o objetivo de recebimento de fluxos e venda eventual.
Exemplo prático de contabilização – Debênture adquirida por R$ 980, com valor de face R$ 1.000, juros de 10% a.a., mantida até o vencimento (custo amortizado):
-
Reconhecimento da aquisição:
-
Reconhecimento de juros efetivos (R$ 98 no primeiro ano):
-
Recebimento de juros contratuais (R$ 100):
Caso a debênture seja mensurada pelo FVPL:
-
Os ajustes a valor justo são reconhecidos diretamente no resultado.
Pelo FVOCI:
-
Os ajustes vão para “outros resultados abrangentes” até a baixa.
2.1.4 Títulos Híbridos: Debêntures Conversíveis
As debêntures conversíveis combinam características de dívida e de capital próprio. São classificadas como instrumentos compostos, nos termos da IAS 32 / CPC 39. Seu valuation considera:
-
Parte de dívida → avaliada como instrumento de renda fixa convencional;
-
Opção de conversão → avaliada como derivativo embutido, geralmente por modelo binomial ou Black-Scholes.
Exemplo de contabilização (emissor): emissão por R$ 1.000, sendo R$ 950 atribuídos à dívida e R$ 50 à opção de conversão:
Esses instrumentos são amplamente usados por startups e empresas em crescimento, pois postergam a diluição acionária e sinalizam compromissos com investidores qualificados.
2.2 Instrumentos de Renda Variável
2.2.1 Definição e Estrutura
Instrumentos de renda variável representam participação no capital social de empresas e não oferecem remuneração contratual garantida. Incluem:
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Ações ordinárias e preferenciais;
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Units (ex: SANB11);
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ETFs, BDRs e FIIs.
Seu valor decorre da expectativa de lucros futuros, governança, condições macroeconômicas e percepção de risco.
2.2.2 Valuation: Modelos e Aplicações
Além do modelo de Gordon-Shapiro (crescimento constante de dividendos), outras abordagens incluem:
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Fluxo de Caixa Descontado (DCF):
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Avaliação pelo fluxo de caixa livre da firma (FCFF) ou do acionista (FCFE);
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WACC como taxa de desconto.
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-
Múltiplos de mercado:
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P/L, P/VPA, EV/EBITDA comparados com pares do setor.
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-
Modelos com opções reais:
-
Consideram flexibilidades gerenciais em contextos incertos.
-
Exemplo prático: A Ambev utiliza valuation baseado em FCFE, dado seu histórico de geração de caixa e política de dividendos. Já empresas de tecnologia com crescimento acelerado tendem a ser avaliadas por múltiplos ou opções reais.
2.2.3 Contabilização: Com e Sem Influência Significativa
(a) Sem influência significativa (até 20%)
-
Avaliação a valor justo:
-
FVPL → variação no resultado;
-
FVOCI → variação em outros resultados abrangentes.
-
Exemplo – compra de ações da Petrobras por R$ 10.000 (FVPL):
Se no fim do período o valor justo for R$ 11.000:
(b) Com influência significativa (20% a 50%) – Método da Equivalência Patrimonial (MEP)
Exemplo – Investimento de R$ 100.000 na JBS, com 30% de participação. Lucro do período = R$ 60.000:
-
Compra:
-
Reconhecimento do lucro proporcional:
-
Recebimento de dividendos (ex: R$ 5.000):
Essas operações também afetam os indicadores de desempenho, como ROE e lucro por ação.
2.3 Implicações para Decisão, Ensino e Regulação
A escolha entre instrumentos de renda fixa e variável impacta:
-
Para o investidor: risco, retorno, tributação e liquidez;
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Para a empresa: estrutura de capital, diluição e custo financeiro;
-
Para o contador e o analista: impacto em DRE, fluxo de caixa e indicadores.
No ensino, o tema favorece abordagens integradas entre valuation, finanças corporativas e contabilidade societária. Na regulação, destaca-se a importância de normas claras (ex: CPC 48 e 39) para mensuração, evidência e transparência.
3. Considerações Finais
O presente artigo explorou os principais instrumentos de renda fixa e variável sob as perspectivas de valuation, contabilização e aplicação prática. Buscou-se responder ao dilema entre instrumentos de dívida e participação acionária, especialmente em contextos como captação de recursos, análise contábil e regulação.
Demonstrou-se que a decisão ótima depende do perfil de risco do investidor, do estágio de desenvolvimento da empresa e da correta interpretação das normas contábeis. A compreensão dos efeitos dos instrumentos na demonstração de resultados, no balanço patrimonial e no fluxo de caixa operacional é crucial para garantir análises consistentes e decisões fundamentadas.
Entre as limitações, destaca-se a complexidade de mensuração de instrumentos compostos e a subjetividade na aplicação de valor justo em mercados com baixa liquidez. No entanto, o aprofundamento do tema representa uma contribuição relevante tanto para a formação acadêmica quanto para a prática profissional e a formulação de políticas públicas.
4. Referências
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